"Bom mesmo é ir a luta com determinação, abraçar a vida com paixão, perder com classe e vencer com ousadia. Pois o triunfo pertence a quem se atreve... a vida é 'muito', para ser insignificante". Charles Chaplin.



sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Proposta da BNCC evidencia o desprezo pela camada mais empobrecida do Brasil

(artigo: Claudete Mittmann)

“A tendência lógica é a destruição da escola pública brasileira, adequando a educação ao tipo de lugar que foi determinado para o Brasil no mundo”.

A educação é um fator primordial para o desenvolvimento de qualquer país que pretende buscar caminhos que levem não apenas ao crescimento econômico, mas também a inclusão social e a emancipação política e social de seu povo. Para isso, o governo precisa estabelecer metas que tenham como norte a implementação de políticas públicas e dotação orçamentária que possam fazer frente aos desafios de uma realidade educacional muito aquém do desejável. Nosso sistema educacional perde para países cujo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) está bem abaixo do brasileiro. 
Os avanços tecnológicos e a globalização são apontados como os principais eixos de mudanças, acontecem em grande velocidade e a educação não está conseguindo acompanhar este ritmo. Temos consciência que é urgente e necessário um novo olhar, por parte dos gestores e profissionais da educação sobre o dia a dia das escolas. É preciso entender que o mito da “Escola Risonha e Franca” há muito foi desconstruído.
Não negamos a necessidade da mudança, ela é uma tarefa necessária para a adequação das escolas à nova realidade que se apresenta. Porém é preciso lembrar, que o caminho que queremos trilhar, é aquele que nos leva a uma mudança de paradigma com práticas pedagógicas inovadoras que possibilitem superar obstáculos para a construção de uma sociedade cidadã, justa e igualitária, onde os direitos de homens e mulheres sejam respeitados.
É nesta conjuntura desafiadora que o governo, ao contrário do que o país precisa, resolve apequenar o processo educacional, impondo uma reforma do ensino médio que não leva em consideração os interesses da sociedade especialmente dos alunos e alunas que em 2017 ocuparam as escolas em protesto contra esta reforma, mas não foram ouvidos.

Objetivo da Reforma do Ensino Médio e a discussão da BNCC
Não é difícil entender o motivo do caminho que levou à reforma do Ensino Médio e agora a discussão da BNCC. Tanto uma quanto outra tem como principal objetivo atender aos interesses do grande capital financeiro especialmente da Confederação Nacional da Indústria (CNI) que quer trabalhadores que saibam ler e escrever, que façam as quatro operações matemáticas básicas, criando um exército de homens e mulheres submissos e despolitizados.
O que fica evidente nesta lei é a não obrigatoriedade de as escolas oferecerem os cinco itinerários (linguagens e suas tecnologias; matemática e suas tecnologias; ciências da natureza e suas tecnologias; ciências humanas e sociais aplicadas e formação técnica e profissional). As escolas poderão optar por estabelecer itinerários que facilitem a contratação de professores, deixando de lado as disciplinas mais problemáticas, e a obrigatoriedade de contratar profissionais habilitados como é o caso da física e química.

Proposta da BNCC ignora as camadas mais empobrecidas
A proposta da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para o ensino médio estabelece que apenas os componentes curriculares de português, inglês e matemática são obrigatórios. Ou seja, tanto a reforma do Ensino Médio quanto a BNCC facultam oferecer menos para quem mais precisa: os jovens pobres das escolas públicas, aumentando ainda mais a distância entre alunos da rede pública e da rede privada. 
A substituição dos saberes e conhecimentos pelas competências é um dos elementos mais graves da atual proposta na BNCC, pois vem de encontro aos interesses do grande capital na linha da Teoria do Capital Humano da Escola de Chicago. Esta teoria é crucial para a instituição de um novo espírito do capitalismo. Para que isso se configure, é preciso dividir a sociedade entre os que vão controlar e os que serão controlados, entre aqueles cujo capital humano (conhecimento) é mais ou menos valioso, ou seja, os que tiverem acesso às áreas do conhecimento mais elaboradas e dominarem as modernas ferramentas tecnológicas, terão direito a melhores salários e a melhores condições de vida. O resto é resto.
Theodore Schultz agraciado com o Nobel de economia em 1979, afirmava: “Uma classe particular de capital humano, consistente do ‘capital configurado na criança” (Schultz, 1973, p. 9)
Para entendermos melhor o conceito levaremos em consideração três elementos: 
em primeiro lugar, a ideia de capital humano; (a pessoa como objeto de troca)
em segundo, a de sua configuração na criança; (a necessidade de criar condições para que a ideia se configure na criança)
em terceiro, a ideia de que essa configuração pode constituir a chave de uma teoria econômica da população relacionadas à biopolítica, à governamentalidade neoliberal, bem como às relações entre ambas. (a fórmula que se pretende implantar nas escolas para a construção de uma nova maneira de conduzir as relações de trabalho, não se negocia mais a força de trabalho mas o indivíduo e seu conhecimento é o novo liberalismo).

Allan Kenji critica a posição da BNCC
Para referendar esta hipótese, recorremos a Allan Kenji, pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Para ele, “a BNCC vem completar e, de fato, instituir que a dimensão do conhecimento já não é mais um requisito escolar, pois ela flexibiliza o suficiente para que se consiga ofertar, para diferentes escolas e para diferentes frações de classe, diferentes tipos educativos. Você pode ter uma escola ‘premium’ para formar as frações que vão dirigir empresas, negócios e ter para diferentes tipos de escola pública, que deem um direcionamento as habilidades das competências dos estudantes. Para nós, isso significa a possibilidade de ofertarem diferentes tipos de sistemas de ensino, conteúdos e materiais didáticos para diferentes frações de classe”. Fonte - UFSC
No tocante a formação de professores, a maioria das universidades formam professores por componentes do currículo do ensino médio: física, química, história, geografia, biologia, matemática, filosofia etc. Quando analisamos a proposta da BNCC veremos que ela sugere como conteúdos as cinco áreas de conhecimento, e não a formação por disciplina, então os professores não trabalharão mais por disciplina, mas por área de conhecimento, ou seja, de forma interdisciplinar. O discurso da interdisciplinaridade vem sendo apregoado a muito tempo e soa bem aos nossos ouvidos, porém, são raros os cursos que formam professores em currículos interdisciplinares. 
Além disso, a dificuldade se torna maior quando nos damos conta de que é necessário que os/as professores/as tenham carga horária e condições de trabalho para poder planejar por área de conhecimento. Para que isto funcione adequadamente, é preciso que sejam disponibilizados espaços para reuniões com os/as profissionais de diferentes áreas com planejamento, sistemático e formação continuada, além de dedicação exclusiva em uma escola, uma realidade muito distante do dia a dia das escolas.
A realidade da docência brasileira na educação básica é o oposto daquilo que a BNCC apresenta. “Dos 494 mil professores/as que trabalham no ensino médio, 228 mil (46,3%) atuam em, pelo menos, uma disciplina para a qual não tem formação, enquanto, apenas 53,7% atuam com formação adequada em todas as aulas dadas. Sociologia, filosofia e artes registram os piores resultados. Física e química vêm na sequência. Somente 27% dos professores que lecionam física no Brasil têm formação na área’. - Fonte: MEC
Dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) esclarecem que no Brasil, os professores recebem cerca de 40% a menos que a média de outras profissões com o mesmo nível de escolaridade. No ensino fundamental 41% dos professores dão aulas em disciplinas para as quais não tem formação e são os que mais horas trabalham por semana, atendendo o maior número de alunos na média. Fonte OCDE
“Por outro lado, a oferta educacional por grandes grupos econômicos é assustadora e irresponsável. Na educação superior, 75% das matrículas são privadas já na educação básica, dos 44 milhões de estudantes, 82% estão nas públicas. Segundo os dados do IBGE de 2016, a Kroton é o maior grupo educacional do mundo, com 877 mil matrículas.
Atualmente este número aumentou exponencialmente com a aquisição da Somos Educação, antiga Abril Educação o maior grupo de educação básica do Brasil, que além de escolas próprias tem cursos pré-vestibulares e idiomas. É dona das editoras Ática, Scipione e Saraiva, do Anglo, da escola de inglês Red Ballon, entre outros negócios”. Fonte IBGE
“Hoje, na Bolsa de Valores, têm seis grupos que prestam serviços educacionais, pelo menos. Quatro deles são de educação superior: Kroton, Ser Educacional, Ânima e Estácio de Sá. A Kroton já era gigante. Ela tem o dobro do tamanho de qualquer outro grupo. Em termos de ativos financeiros, a Kroton é o maior grupo educacional do mundo. Na educação superior são 877 mil matrículas. A reforma do ensino médio era uma demanda estratégica para esses grupos controladores da educação superior “, Alan Kenji Fonte Revista IHU On-Line.
A hipótese de Allan Kenji “é a de que esses grupos controladores vão adquirir os sistemas de editoras e os sistemas de ensino, porque o foco deles é o fundo público, seu mercado são as escolas de educação básica públicas. E aí é que está a conexão entre a reforma do “novo” ensino médio, e a proposta da BNCC para o ensino médio, a noção das competências e habilidades defendidas pela CNI e o ataque às humanidades em processo no governo atual”.

Reforma caminha para a destruição da escola pública
A tendência lógica é a destruição da escola pública brasileira, adequando a educação ao tipo de lugar que foi determinado para o Brasil no mundo. Na verdade, as demandas atuais da CNI e destes grupos em termos educacionais, é a formação da força de trabalho para atender a demanda do mercado. Por isso, saber ler e escrever e entender os fundamentos básicos da matemática são suficientes. Este é o tipo de educação que estão dispostos a ofertar, seja na educação básica ou superior, Uma proposta perfeitamente alinhada a um projeto de país subordinado. Quando olhamos a questão da dependência, podemos ver a existência de um eixo articulador que ao longo dos governos neoliberais foi sendo criado e agora, se estabelece com maior força.
Para Giovana Lunardi, professora da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), “a base representa a ponta de lança de um processo que ameaça o próprio sistema público de educação. Segundo ela, em todos os países em que a educação passou por reformas nos moldes da que a BNCC pretende fazer com a educação brasileira, veio articulada a um conjunto de reformas políticas que afetaram severamente os sistemas de ensino”. - Fonte http://epsjv/Fiocruz
Além disso, o discurso da qualidade de gestão abre caminho a possibilidade da contratação de empresas privadas, principalmente as ligadas ao terceiro setor para a gestão de resultados nas escolas. Um exemplo disto é a Lei aprovada pela Câmara de Vereadores de Florianópolis que estabelece a contratação das Organizações Sociais para gerir as novas escolas da Educação Infantil da rede municipal. 
Em nossa opinião, reduzir a formação da juventude brasileira à matemática e ao português para o ensino médio, como consta na BNCC, é evidenciar o desprezo puro e simples que a elite sente por ela, pois não leva em consideração sua realidade, suas necessidades ou quem é esta juventude. A oferta de uma educação medíocre, que agride o direito ao aprendizado e a apropriação dos conhecimentos historicamente construídos pela sociedade, e que não leva em conta as liberdades individuais ou coletivas com a única preocupação em atender a demanda do mercado de trabalho é um retrocesso sem precedentes e a conta a ser paga pela sociedade será muito alta. Deixaremos de ser um país em crescimento para continuar a cultivar nosso vira-latismo histórico.

* Defensora da educação pública, Claudete Mittmann é aposentada da rede estadual, atuando junto ao SINTE/SC, como suplente da executiva estadual, sempre na luta.

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