"Bom mesmo é ir a luta com determinação, abraçar a vida com paixão, perder com classe e vencer com ousadia. Pois o triunfo pertence a quem se atreve... a vida é 'muito', para ser insignificante". Charles Chaplin.



sexta-feira, 28 de maio de 2021

Reflexão na pandemia: É preciso uma aldeia inteira

 

Recentemente, em Xanxerê, no oeste catarinense, houve denúncia que um menino de 11 anos estaria ostentando uma adaga (arma branca), em rede social, insinuando que poderia fazer algo contra a escola. O fato mobilizou PM, Conselho Tutelar, Delegacia de Polícia e Ministério Público. A arma foi recolhida, com autorização do pai do menino.

A reflexão é mais que oportuna: O que estamos fazendo, ou deixando de fazer, com as nossas crianças?

por Maria do Pilar Lacerda, professora de História, graduada em História, pela UFMG, com especialização em Gestão de Sistemas Educacionais, na PUC-Minas

É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança. Bastante ventilado nas comunidades educativas, o provérbio africano seria uma outra maneira de reverberar as palavras da filósofa alemã, Hannah Arendt, sobre a premência de responsabilização coletiva pela aprendizagem de crianças e adolescentes: “Relativamente à criança, a escola representa de certa forma o  mundo, ainda que o não seja verdadeiramente. Nessa etapa da educação, uma vez mais, os adultos são responsáveis pela criança. A sua responsabilidade, porém, não consiste tanto em zelar para que a criança cresça em boas condições, mas em assegurar aquilo que normalmente se designa por livre desenvolvimento das suas qualidades e características. De um ponto de vista geral e essencial, é essa a qualidade única que distingue cada ser humano de todos os outros, qualidade essa que faz com que ele não seja apenas mais um estrangeiro no mundo, mas alguma coisa que nunca antes tinha existido”.
Se pensarmos que a vida em família, a partir do século 20, ganha uma nova ordenação, pautada por demandas econômicas que absorvem a força de trabalho dos pais em período integral, veremos que essa necessidade de envolvimento de toda a comunidade na educação é cada vez mais urgente. Nesse sentido, a escola exerce um papel fundamental como agente educadora e elo entre crianças e adolescentes, sociedade e entorno. Em uma concepção formal, essa “dissolução” dos muros da escola exige a ampliação do olhar para os significados de educação e de aprendizagem. Qualquer pessoa é capaz de gerar e compartilhar saberes? É possível aprender em qualquer lugar ou situação? Ou a aquisição do conhecimento estaria restrita à sala de aula?
Antes de qualquer tentativa de resposta, é preciso esclarecer que essas interrogações não pretendem invalidar a importância da instituição escolar. Ao contrário, assim como Hannah Arendt, acreditamos que a escola deva ser um importante veículo de aquisição de conhecimento e inserção no mundo. Nos tempos atuais, o conteúdo clássico difundido no currículo escolar é o capital cultural e intelectual que servirá como passe social. Porém, a conformação da sala de aula como único espaço de aprendizagem já não basta para as demandas do século 21.
Em pauta em grande parte dos debates atuais sobre políticas públicas de educação, o conceito de educação integral propõe, exatamente, uma mudança de paradigma e a reconfiguração das noções de aprendizagem e de escola, sob a perspectiva de que o desenvolvimento integral acontece ao longo da vida, em dimensões diversas, promovido por todas as experiências educativas com as quais se entra em contato.
No entanto, de forma geral, a associação mais costumeira e imediata ao pensar em educação integral diz respeito ao tempo. Isso, talvez, tenha origem no fato de termos uma escola de tempo encurtado. No Brasil, a permanência diária do aluno na escola é de quatro horas contra o mínimo de seis horas em países europeus, por exemplo. Mas não basta ampliar a duração das aulas. É preciso planejar as possibilidades educativas para além do currículo básico, incluindo temas como direitos humanos, artes, desenvolvimento sustentável e cultura de paz. Nesse contexto, cabe falar de tempo, já que a formação integral exige um período maior de permanência na escola.
O percurso em direção a uma escola brasileira de tempo integral, calcada no conceito de educação integral, teve início, em 2008, com a implementação do Programa Mais Educação, pelo então ministro Fernando Haddad, durante o segundo mandato do presidente Lula. O último saldo do programa, de acordo com o Censo Escolar da Educação Básica de 2014, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – Inep, foi o aumento expressivo do número de matrículas em educação integral, de alunos que permanecem sete horas por dia na escola, da ordem de 41,2%, o que significa um montante de 4,4 milhões de matrículas – no censo anterior, esse valor correspondia a 3,1 milhões.
Para estar em consonância com as metas definidas pelo Plano Nacional de Educação, o País terá que se empenhar no processo de adesão ao modelo. Segundo a Meta 6, até o ano de 2024, a educação em tempo integral deverá ser oferecida a, no mínimo, 50% das escolas públicas, de forma a atender, pelo menos, 25% dos alunos da educação básica. A meta estabelece, ainda, “o desenvolvimento de atividades de acompanhamento pedagógico, experimentação e investigação científica, cultura e artes, esporte e lazer, cultura digital, educação econômica, comunicação e uso de mídias, meio ambiente, direitos humanos, práticas de prevenção aos agravos à saúde, promoção da saúde e da alimentação saudável, entre outras atividades”, que devem ser “desenvolvidas dentro do espaço escolar, de acordo com a disponibilidade da escola, ou fora dele, sob orientação pedagógica da escola, mediante o uso dos equipamentos públicos e o estabelecimento de parcerias com órgãos ou instituições locais”.
Nesse ponto, existe uma grande mudança de ponto de vista, com a abertura a novas proposições pedagógicas, a validação do espaço exterior à escola para a realização de atividades, e a possibilidade de parceria com instituições do entorno para a veiculação de conhecimento. Em resumo, a comunidade é chamada a atuar em conjunto com a escola, em espaços diversos do território. E é aí que a proposta educativa pode ganhar potência e materialidade.
A articulação entre escola, comunidade e território é uma oportunidade ímpar de aproximação do conteúdo do currículo básico à realidade dos estudantes. Ao trazer para o debate os saberes, fazeres, contradições, memórias, identidades e valores comunitários, a escola deixa clara a sua opção por uma perspectiva de ser humano total, integral.
Com todas as últimas mudanças na dinâmica política brasileira, cabe a todos a responsabilidade por cobrar a continuidade do projeto de formação integral de nossas crianças e jovens. É preciso garantir uma educação pública de qualidade, baseada nos princípios da equidade e de uma visão multidimensional, em que o foco seja a plena aprendizagem e o desenvolvimento de potenciais e vocações. Conforme disposto no segundo artigo da Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB: “A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.