"Bom mesmo é ir a luta com determinação, abraçar a vida com paixão, perder com classe e vencer com ousadia. Pois o triunfo pertence a quem se atreve... a vida é 'muito', para ser insignificante". Charles Chaplin.



domingo, 8 de dezembro de 2019

Era só um baile funk

Uma semana de indignação, medo, revolta, manifestações por justiça.

Por Elivane Secchi, Secretária de Políticas Sociais do SINTE/SC

Era só um baile funk. Era só um baile, onde jovens de uma comunidade foram para se divertir, para dançar, para namorar, para beber alguma coisa. Era só um baile funk, assim como nas nossas pequenas e humildes cidades do interior existem os bailes comunitários, onde os jovens dançam, se divertem, bebem sua cerveja, assumam sua namorada, seu namorado, e voltam para casa, no final da festa. Era só um baile funk, com um baile de CTG, onde as pessoas vão, para se divertirem com respeito.
Era só um baile funk. É outra cultura. É outra forma de pensar. É outra forma de ver o mundo. É outro jeito de dançar. Era só um baile funk, onde muitos jovens só queriam se divertir. Era só um baile funk, onde, com certeza, a grande maioria dos jovens é filha de trabalhadores e trabalhadoras, estudante da rede pública daquele local.
Diante da tragédia que aconteceu, domingo passado (01/12), em Paraisópolis (SP), eu fico me perguntando: Como será que nós, cidadãs e cidadãos interioranos, de pequenas cidades, nos nossos pequenos estados, com o nosso pequeno conhecimento, com a nossa pequenez, como é que a gente vê, ouve e lê esse tipo de notícia? Como soa para nós – para nossos ouvidos, nossas mentes – que muitos jovens estavam num baile funk, e a polícia chegou atirando? Talvez, alguns digam: “Na favela, são todos bandidos mesmo”. Talvez, outros pensem: “Pobres dos jovens, mas também eu não os conheço (como se eles não existissem pra mim)”.
Eu mesma soube da existência de Paraisópolis, a partir de uma novela chamada “Paraisópolis”. Até então, eu não sabia da existência desse local, com 100.000 habitantes (maior favela de São Paulo), bem maior que muitas cidades onde vivemos.
Eu fico me perguntando, também: Como a gente vê e como é que a gente sente o incêndio na Amazônia, a matança de índios? Como é que nós, que vivemos no interior de um Estado, no interior de um País, no interior do mundo, que somos criados, tendo em mente que somos descendentes europeus, e, portanto, apesar de trabalhadores, achamos que somos privilegiados. E somos privilegiados mesmo. Como é que nós entendemos essa matança de indígenas, a queimada da mata, pra nós, que vivemos da terra, que cultivamos a terra? “Mas a Amazônia é tão longe, e eu não conheço esses índios. Como é que eu sinto isso?”
Eu continuo pensando: Como é que nós, moradores do interior de um País, do interior de um Estado, entendemos a seca no nordeste? Aquelas pessoas e aqueles animais morrendo de sede, de desnutrição. Como isso impacta na nossa vida? O nordeste é tão longe. Será que isso, de fato, toca os nossos corações, ou é só mais uma notícia?
Eu quero fazer aqui esse pequeno exercício de pensar. Nós precisamos, antes de qualquer coisa, nos indignar com esses acontecimentos: com incêndio da mata, com a matança de índios, com a pobreza, a fome e a seca no sertão nordestino, com a matança de jovens em comunidades pobres e vulneráveis do Rio de Janeiro e São Paulo, que vivem e convivem com a criminalidade, com o descaso do Estado e com uma polícia que agora tem o aval para matar. Como é que tudo isso soa na nossa vida? Nós, cristãos, que vamos à igreja, que pedimos a benção de Deus, que rezamos pela paz mundial, que oramos pelos nossos irmãos e irmãs? O que mais nós fazemos, além de ouvir, desligar a televisão e a luz, ir para cama, e, talvez, lembrar de fazer uma prece para que Deus acolha essas almas? Qual é o nosso posicionamento real em relação a isso tudo? São favelas imensas. Milhares e milhares de pessoas que vivem ali. Famílias inteiras – pais, mães, filhas, filhos, crianças, idosos, jovens, adultos trabalhadores e trabalhadoras, pessoas que acordam, todos os dias, para irem ao trabalho, assim como nós fazemos, onde moramos.
Eu sinto que a nossa indignação é muito pequena, porque a gente acaba se envolvendo numa redoma, num mundo pequeno, num mundinho íntimo, e não somos capazes de compreender o sofrimento do ser humano, mundo afora. Não somos capazes de entender o que estão vivendo os chilenos, os venezuelanos, os bolivianos, os sírios, os brasileiros. Não somos capazes de sentir a dor de tantos e tantos seres humanos que só querem viver com dignidade, com direitos, com cidadania, que só querem ser livres para trabalhar, para estudar, para amar.
E eu continuo questionando: O que nós temos feito, para contribuir por um mundo melhor? Será que nós entendemos e contribuímos de fato, ou simplesmente criticamos e condenamos? Quantos de nós, ao ouvirmos a notícia do massacre no baile funk de Paraisópolis, pensamos: “No mínimo, são todos jovens drogados, a serviço do crime”, condenando todo mundo ao mesmo “balaio” (destino).
Eu fico perguntando, também: Quando uma mulher é assassinada, por seu marido, namorado, amante, ex, quantos de nós temos a ousadia de proferir tantas injúrias, como, por exemplo: “Ela deve ter feito alguma coisa, para merecer isso”. Da mesma forma quando uma mulher, menina, ou jovem, é estuprada, e nós ouvimos, da boca descarada de tantas outras mulheres: “Do jeito que se veste, estava pedindo para ser estuprada”.
Eu confesso que estou decepcionada com o ser humano, mas ainda tenho esperança. Se nós acreditamos, de fato, que somos capazes de amar como Jesus nos ensinou, não podemos simplesmente aceitar e concordar com esses massacres, com toda essa violência. Nós não podemos ser indiferentes a tantas injustiças causadas no nosso País, no planeta inteiro. Nós não podemos aceitar que governos, sem vontade política, recusem resolver e melhorar a condição de vida do seu povo. Matar os pobres não resolve problema algum, em qualquer país. Matar os pobres só traz mais desgraça e desigualdade.
Então, eu penso: Como será que nós recebemos essa enxurrada de notícias trágicas, diariamente? Como será que nós, no cantinho da nossa casa, assistimos esses massacres, pela televisão, ou computador? Qual o pensamento que nos chega, quando vemos esse tipo de notícia? Mais importante: Quantos de nós pensamos o que fazer para mudarmos essa realidade? De nada adianta gritarmos aos quatro ventos que somos cidadãos e cidadãs do bem. Nós precisamos assumir atitudes – não, de condenação dos nossos semelhantes. Nós temos, sim, de nos engajar nesta luta contra a desigualdade e a injustiça, porque somos todos trabalhadores e trabalhadoras, filhos e filhas desta terra, deste grande País. Muitas vezes, nesses últimos tempos, tentam nos fazer acreditar que o Brasil não nos pertence. Mas, sim, esse País nos pertence, é tão nosso, quanto de qualquer outro brasileiro, ou brasileira. É o chão onde nascemos, vivemos, concretizamos sonhos.
Deixo essa breve reflexão, para que tentemos nos colocar no lugar do outro, neste momento, na favela de Paraisópolis, dentro das casas daquelas famílias, que estiveram nos hospitais, no IML, recolhendo e enterrando o corpo de um filho, de uma filha, jovem, adolescente, que simplesmente foi massacrado pela polícia, com aval do governo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário